Se eu voltar para a Síria me matam, diz refugiado há dois meses no Brasil (Postado por Lucas Pinheiro)
O casal morava no bairro de Inshaat, uma área de classe média alta vizinha à região de Baba Amr, há quatro anos. A vida era tranquila antes do início do conflito, segundo seu relato.
Os protestos começaram em março de 2011. Rebeldes que querem a derrubada do regime do presidente Bashar al Assad são reprimidos violentamente pelas forças oficiais e milícias pró-Assad, e os confrontos generalizados no país já mataram mais de 19 mil pessoas desde o início da revolta, a maioria civis, segundo ativistas.
O regime diz estar combatendo "terroristas" que tentam desestabilizar o país. A comunidade internacional pressiona Assad, mas Rússia e China, aliados do governo sírio, impedem a aprovação de sanções contra o regime no âmbito do Conselho de Segurança da ONU. Uma trégua mediada pelo diplomata Kofi Annan, enviado da ONU e da Liga Árabe, fracassou, deixando o país em uma crise humanitária e à beira da guerra civil.
Após março de 2011, o Exército sírio passou a perseguir manifestantes e membros do rebelde Exército Livre Sírio na região onde Jihad vivia. "O povo foi massacrado. Quando começou [o confronto], o Exército fechou o bairro, por meses ninguém podia entrar nem sair", recorda-se ele.
Casado com a brasileira Andressa Oliveira Januária, de 26 anos, o sírio vivia em um apartamento comprado por eles no segundo andar de um prédio. Eram vizinhos da mãe de Jihad, que morava no primeiro andar. "A maioria dos estrangeiros [em Homs] morava naquele bairro. Uma família de brasileiros também vivia ali", diz.
O casal se conheceu no Brasil há sete anos, no bairro do Bom Retiro, no Centro de São Paulo, durante uma estadia do sírio no país. Eles viveram na capital paulista até 2008, quando Jihad levou a mulher para visitar sua cidade-natal. Eles decidiram mudar-se para Homs, onde viviam há quatro anos.
Ataques
Nos primeiros meses dos conflitos na Síria, Jihad se lembra de um ataque contra um edifício próximo, no seu bairro. "Houve um barulho forte e nós descemos para a casa da minha mãe. Caiu um míssil no prédio vizinho e o impacto atingiu minha casa. Saiu tudo do lugar na cozinha, caiu uma parede inteira. Passei a deixar minha mulher com minha mãe no apartamento debaixo", diz.
Com o tempo, no início de 2012, os ataques começaram a ficar intensos. A mulher, a mãe e os filhos de Jihad foram para um abrigo subterrâneo. "Em outro quarteirão de Inshaat havia duas casas subterrâneas que passaram a ser usadas pelas mulheres e crianças. Os homens ficavam de fora, nas casas", afirma Andressa. Ela se lembra de um ataque contra uma família vizinha que eles conheciam. "Fizeram uma fogueira na casa, porque acharam a foto de um filho junto com manifestantes. Picharam ofensas nos muros, mas não podíamos falar nada", diz.
Gritos
"A gente ouvia os vizinhos gritarem, pedirem ajuda. Você não consegue ficar quieto, é um sentimento muito ruim se você está sentado dentro de casa e só fecha a janela, se esconde no banheiro. Mas quando a gente tentou salvar pessoas do bairro, muitas haviam sido mortas", lamenta Jihad.
Ele se lembra que, na véspera de alguns dos ataques mais fortes do Exército a Homs, em fevereiro deste ano, a energia elétrica já havia sido cortada, a internet não funcionava e o telefone permitia ligações só durante algumas horas do dia. "As mulheres ficavam o dia todo nos abrigos, saíam à noite e voltavam para as casas, porque o bombardeio amenizava. Mas durante a manhã, por volta das 5h, elas voltavam [aos abrigos] porque cairiam mais mísseis."
Nas últimas semanas antes de vir ao Brasil, Jihad fez contato com a Embaixada. "Consegui ligar e me disseram que iriam mandar ajuda. Eles pediram para falar com Andressa, eu falei que ela estava no abrigo. Pediram o endereço e disseram que iriam falar comigo em 20 minutos para mandar um carro", afirma. Nesse momento, o telefone foi cortado. A família ficou sem contato com a Embaixada brasileira por sete dias até conseguirem sair de
Homs.
"No último dia [antes de sair], duas bombas explodiram dos lados direito e esquerdo da casa, o apartamento ficou destruído dos dois lados. Tirei minha família de lá", lembra-se Jihad. O sírio diz ter conseguido contato com o Exército Livre, que enviou dois carros para que eles tentassem sair da cidade.
"Em um carro entramos eu, minha mulher e minhas crianças, para ir a Damasco. No outro estavam meus dois irmãos e minha mãe. Nós conseguimos sair e eles foram detidos pelo Exército", diz Jihad. Os irmãos foram presos - um deles por 45 dias - e a mãe foi espancada. "Judiaram, bateram nela", diz.
Sem dinheiro
Ao chegar a Damasco, o casal procurou a Embaixada, que os deixou em um hotel. A representação diplomática ofereceu 15 dias de hospedagem antes que eles fossem mandados ao Brasil. Jihad, porém, pediu mais tempo para poder recuperar objetos, roupas e tentar libertar os irmãos.
"Eu não tinha dinheiro, não tinha nada. Eu disse a eles que havia coisas na minha casa que eu podia buscar. Eles orientaram a não levar a mulher porque seria perigoso, mas ela quis ir", relata o sírio. Eles ficaram algumas semanas na capital do país antes de decidir seguir de novo a Homs.
Foi um dos momentos mais tensos para o casal. Ao regressarem a seu antigo apartamento, acharam o prédio semi-destruído. "As coisas estavam todas destruídas, e o que sobrou havia sido roubado. Só conseguimos recuperar roupas", afirma Jihad. Uma situação curiosa é que havia água minando do edifício e caindo da laje, relembra Andressa. "Eles cortaram tudo, menos a água. Então tinha a caixa d'água cheia de tiro, destruída", diz a brasileira.
Quando os dois entraram no carro e seguiam de volta a Damasco, foram parados pelo Exército. "Eles pediram meu documento [passaporte]. Entreguei e disse que estava indo viajar, então eles pediram o da Andressa e ela não estava com ele", relembra-se Jihad.
"Eles abriram a porta dela, disseram que ela falavra quebrado [com sotaque]. Perguntaram de onde ela era e fizeram um comentário: 'O que você acha de a gente levar você presa para deixar seu marido louco?'." O casal ficou com medo, e Andressa disse que estava indo para fora do país, que eles iriam ao Brasil. Eles repetiram a frase para o marido.
"Eles me ofenderam muito, xingaram a minha mulher. Mas você não pode responder porque a arma está na mão deles, eles iriam atirar em nós. Disseram para sumirmos", diz o sírio.
Rumo ao Brasil
Já em Damasco novamente, Jihad tentava encontrar um jeito de libertar os irmãos. A mulher e os filhos foram retirados antes do país pela Embaixada brasileira. "Eles foram dois ou três dias antes de mim", afirma o sírio.
Para libertar os irmãos, que, segundo Jihad, foram transferidos várias vezes de cadeia, ele teve que pagar suborno. "Eles sofreram as piores coisas que existem, você não consegue imaginar", afirma o sírio. Um dos irmãos, Ali Kesibi, também veio ao Brasil na condição de refugiado.
Em entrevista ao G1, Kesibi, que não fala português, diz ter sido torturado na prisão. Ele afirma que em alguns momentos foi algemado a uma espécie de gancho por até seis horas, quando fios ficavam presos a seu corpo. O chão era molhado, de forma que se ele pisasse receberia choques. Era inevitável encostar no chão, já que o peso todo do corpo ficava nos braços esticados.
Outras formas de tortura incluíam espancamentos, falta de comida e celas superlotadas. "A gente teve que pagar, dar algum dinheiro" para tirar Kesibi da cadeia, afirma Jihad. Ele diz que está no Brasil endividado, vivendo de empréstimos e tentando trabalhar. "Eu era despachante [na Síria]", afirma o sírio.
As últimas notícias recebidas por Jihad de sua mãe e seu outro irmão chegaram há um mês, por telefone. Ele acredita que ambos estejam vivos, mas não tem como saber. Seus tios e primos estão tentando fugir do país. Sobre os vizinhos, ele relata que não tem mais notícias. "Alguns morreram, outros viajaram para o Líbano, para Turquia, e sei de outro que veio ao Brasil. Estão todos fugindo, porque não é brincadeira."
Bashar Al Assad faz um governo cruel e ditatorial, na opinião do sírio. "A gente tem o direito de falar isso [que não queremos Bashar], mas para ele não. Para ele, matar todo mundo não é um problema", lamenta Jihad. "Para o governo não interessa qual casa, eles vão jogar mísseis nas pessoas dentro dos bairros, para as pessoas ficarem com medo. A gente está vendo agora essa coisa das armas químicas", diz.
Jihad sonha com um país democrático, em que todos possam votar e eleger os governantes. Mas ele não acredita que isso possa ocorrer com o atual governo no poder. "As pessoas ficaram quietas por 40 anos. Se um dia ele cair [Bashar], eu quero voltar", afirma.